Certo dia, anos atrás, recebi o telefonema de um maestro alemão convidando-me a fazer alguns concertos com sua orquestra de Hamburgo – ele queria especificamente o Concerto nº1 para piano e orquestra de Schostakovich. Perguntou se eu o tinha em meu repertório, menti descaradamente dizendo que sim (imaginem vocês se eu perderia essa oportunidade!); acertamos os detalhes e nos despedimos. Só aí fui ver a cara do concerto. Para minha decepção, absolutamente não me identifiquei, mas aí já não tinha jeito: comecei a estudá-lo. De início o corpo negava aquilo tudo e deixava isso bem claro presenteando-me com um monte de dores. Mas aos poucos fui me habituando, as dores passaram e comecei até a gostar da obra. Para quando vieram os ensaios com a orquestra eu já estava abertamente curtindo a música e, para minha surpresa, acabou sendo uma das obras que melhor toquei na vida, com enorme sucesso nas três apresentações que se seguiram.
Dizia John Cage: não fosse o acaso, ficaríamos nos repetindo eternamente, escravos do nosso gosto e da nossa memória. Eu jamais teria escolhido esse concerto de livre e espontânea vontade. No romance “Presto con Fuoco“, de Roberto Cotroneo, dois pianistas famosos conversam sobre a interpretação das Baladas de Chopin: “Imagino que sua preferida seja a quarta”; “Realmente é! Como o sabe?”; “É a que pior toca”.
Distância necessária, amor, desejo, gosto, escolhas: equilíbrio delicado. Dar a chance, ter a chance, arriscar, experimentar. Nunca terminamos de nos conhecer. E depois que a gente acha que se conhece, vem a nova tarefa: desconstruir essa chatice que nos tornamos.
Alberto Heller
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Minuto a minuto nos transmutamos em heróis ou covardes, cansados ou afoitos, com a alma leve ou correndo riscos. Esta desconstrução lembra o autor de Estranheirismo / desde que minha vida saiu dos trilhos sinto que posso ir a qualquer lugar!
Desde que ouvi pela primeira vez o verso "cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é", achei que essa é a melhor definição de "conhecer-se" ! E uma vez ouvi o Jô Soares dizer que a coincidência é tão excepcional que ele não entendia porquê insistiam em chamá-la de "mera"! Nunca esqueci disso e por isso nunca mais acreditei no acaso, tão excepcional quanto a coincidência!
E viva a sincronicidade!