Gestalt-terapia

Embora os criadores da Gestalt-terapia tivessem profundo conhecimento e prática da psicanálise freudiana, criticavam nesta (entre outras coisas) seu modelo demasiadamente interpretativo e focado no passado. Preferiram adotar por isso um estilo de intervenção mais voltado à experiência atual, ao momento vivido (ao aqui-agora): o corpo, as sensações, as emoções, a percepção do espaço-tempo, a relação que se estabelece entre consulente e terapeuta etc.

Isso não significa que o histórico da pessoa e seus relatos envolvendo o passado não tenham importância, apenas que essa história é constantemente trazida ao presente na forma de experiência, de vivência do aqui-agora e de suas implicações (nos modos pelos quais nos implicamos – ou não – nisso que relatamos).

A Gestalt-terapia não se baseia no modelo clínico-médico de diagnósticos, doenças e curas; interessa-se antes em compreender as formas pelas quais nos ajustamos em cada situação – sendo que não há uma forma “correta” a ser alcançada, não há um ideal de “normalidade” nem de “saúde”. Afinal, é preciso chegar juntos – consulente e terapeuta – à compreensão do que seria tal “estado saudável”: cada sujeito precisa de coisas muito diferentes a fim de chegar a um equilíbrio, e mesmo tal equilíbrio muitas vezes precisa ser abandonado, “chacoalhado” a fim de romper paradigmas e criar novas formas de ser e de estar no mundo. Para isso devemos primeiramente nos distanciar de quaisquer visões pré-concebidas que possamos ter do ser humano e do mundo.

A clínica gestáltica procura resgatar o estilo crítico dos clínicos gregos que, ao operar a parresia (ou dito verdadeiro sobre aquilo que se oculta na vida “civilizada”), provocam um desvio (parênklises) na forma como a cidade vê a si própria, apontando para a presença daquilo que, mais tarde, o epicurista Lucrécio denominou de elemento desviante (clinamen). Transposta para o campo das relações de confidencialidade, a clínica é o exercício do dizer tudo, ou do deixar-se dizer mais além ou mais aquém do que já é sabido, como se assim pudéssemos transcender as posições escolásticas que adotamos sobre nós mesmos e sobre os outros. Fazer clínica envolve encontrar e acolher, no discurso e na ação do(s) interlocutor(es), o estranho ou inesperado que possa(m) produzir. Vale lembrar que os antigo gregos diferenciavam éthos (a ética em seu sentido moral) de êthos, palavra que designava a ação de dar abrigo a um viajante ou a um desconhecido. Nesse sentido, nossa ética clínica liga-se ao êthos: permitir-se ver e acolher o que possa haver de estranho (diferente) em nós mesmos e no outro.

Logo, a clínica gestáltica distingue-se da prática dogmática de aplicação de um saber (ou phármakon), como é o caso da clínica médica (klinikós) e de todos os discursos científicos. Também se distingue das práticas de sugestão alavancadas por metas ou ideais, como costuma acontecer em alguns tipos de psicoterapias (e como são popularmente disseminadas nas publicações de autoajuda).

A Gestalt-terapia nasceu nos EUA entre os anos 1940 e 1950 numa elaboração conjunta de vários autores; embora se destaquem como principais criadores Fritz Perls e Paul Goodman, foi fundamental o trabalho de Laura Posner (Laura Perls), Elliott Shapiro, Isadore Fromm, Ralph Hefferline, Paul Weisz e Jim Simkin. Talvez o maior ponto de divergência nesse grupo tenha sido justamente a escolha de um nome para esse novo tipo de abordagem psicoterapêutica: cogitou-se nomes como Terapia da Concentração, Terapia Integrativa, Psicanálise Existencial e outros, até finalmente se decidirem por Gestalt-terapia. Esse nome, porém, não deve ser confundido com a psicologia da Gestalt (ou teoria da Gestalt), movimento da psicologia alemã do início do século XX, que teve como principais figuras Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka.

“Gestalt” é uma palavra alemã que significa, literalmente, forma (ou figura, de onde mais tarde se falará muito em configuração). Apesar de assumir diversas conotações, a ideia básica contida nessa palavra é a de exprimir uma totalidade irredutível às suas partes (ou, dito de outro modo: o todo não se reduz à soma das partes). Ou ainda: a experiência que fazemos de um todo nunca se deixa analisar ou racionalizar totalmente, pois não dispomos de todas as partes de um todo. Nas palavras de Wertheimer, “a fórmula fundamental da teoria da Gestalt poderia expressar-se da seguinte maneira: existem totalidades cujo comportamento não é determinado pelo de seus elementos individuais, mas em que os processos parciais são eles próprios determinados pela natureza intrínseca do todo”.

Essa ideia foi depois associada às pesquisas do neurologista Kurt Goldstein, que ao trabalhar com feridos de guerra percebeu que em vários casos de lesões cerebrais outras partes do cérebro passavam a desempenhar o papel da parte danificada, levando-o à ideia de que há um todo orgânico que se autorregula, o que viria a ficar conhecido como teoria organísmica.

Essa visão holística também ganhou força com a teoria de campo elaborada por Kurt Lewin. Trata-se de uma noção de “espaço vital” que diz respeito à totalidade dos fatos que determinam o comportamento de um indivíduo em certo momento – fatos que incluem a pessoa e o meio, representando a totalidade dos eventos possíveis, designados também por fenômenos de campo.

Os experimentos da psicologia da Gestalt, somados à teoria organísmica e à noção de campo, mostram que os fenômenos são muito mais complexos, multifacetados e interligados a outros infinitos fenômenos do que se possa inicialmente imaginar. No campo da filosofia essa questão estava sendo profundamente investigada na passagem do século por Edmund Husserl, que chamou o estudo dos fenômenos justamente de Fenomenologia – e que viria a se tornar uma das mais importantes áreas da filosofia (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e outros) e da psicologia. Das várias influências sofridas pela Gestalt-terapia é possível afirmar com segurança que a mais importante é sem dúvida a fenomenologia (Isadore Fromm chega a escrever no prefácio à obra fundamental do movimento – “Gestalt-terapia”, de 1951 – que “a Gestalt-terapia é fenomenologia aplicada”).

Husserl (1859-1938) é considerado o fundador do método fenomenológico (com grande influência de seu professor Franz Brentano – em especial, o conceito de intencionalidade), método que ele desenvolveu na Alemanha entre fins do século XIX e início do século XX. O termo “fenômeno” provém, em sua etimologia grega, da ideia de revelar, de trazer à luz do dia (em grego, fainomai tem o sentido primário de brilhar – mesma raiz que fós, luz –, também de mostrar-se ou aparecer). Na fenomenologia a análise de um fenômeno volta-se, primeiramente, àquele que analisa: o que me permite afirmar isso que afirmo? É preciso examinar atentamente a relação entre o sujeito pensante e o objeto pensado. Afinal, não há observação “neutra”, e a própria presença do observador interfere diretamente no fenômeno observado (do qual ele é parte integrante).

Mais que uma fenomenologia específica (há tantas fenomenologias quanto fenomenólogos), o que se sobressai é uma atitude fenomenológica; nessa atitude, nunca partimos de pressupostos fixos e estabelecidos, de “verdades” ou dogmas: há, claro, uma história, mas é preciso sempre começar de novo, visando assim uma compreensão atual, viva. Por isso, nunca há pressa em dar nomes às coisas, em rotular: muitas vezes, a pressa em rotular é apenas uma ansiedade frente ao novo e que justamente nos impede de viver essa novidade: agarramo-nos ao que já conhecido e deixamos assim de ver nossa própria história sob novos ângulos, novas perspectivas – novas formas (Gestalten), novas configurações.

Na clínica gestáltica não se trata de chegar a diagnósticos e encontrar “curas” para “doenças”: interessa-nos antes compreender os processos envolvidos, reconhecer as formas e os fenômenos envolvidos, descrever pouco a pouco o que está acontecendo no aqui-agora. Em cada contexto, em cada situação, ajustamo-nos de forma diferente – daí falarmos em ajustamentos (o sujeito não é: ele está). Reconhecemo-nos nos diversos modos pelos quais agimos e reagimos, pelos modos como nos relacionamos. Trata-se de um self dinâmico, sempre em movimento, sempre em mutação – e é nesse movimento que ele deve ser apreendido.

1. A eterna reconfiguração do mesmo: repetição e criação no contexto artístico e terapêutico

2. O complexo fenômeno das adicções – novas perspectivas

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