Tive aulas de piano por dois anos com ele, na Alemanha; era sueco, chamava-se Arne Torger. Certo dia ele encasquetou que uma música que eu acabara de tocar não estava boa. Fiquei chateado, era uma peça que me emocionava muito e, ao menos assim me parecia, não estava tão ruim como ele insistia em afirmar. Toquei-a várias outras vezes nesse mesmo dia, a aula foi ficando tensa, tipo duelo de faroeste. Finalmente ele se atirou exausto numa cadeira e disse: “Alberto, pode ser que o que você esteja escutando dentro da sua cabeça esteja lindo; mas o que está vindo aqui para fora não está”. Aquilo doeu. No dia seguinte me gravei e, ao ouvir a gravação, não pude deixar de dar-lhe razão. Como diz Chico Buarque em seu Fado Tropical, “é que há distância entre intenção e gesto”.
Há frases que continuam ecoando eternamente nos labirintos de nossa memória. Essa é uma delas. Volta e meia me pego ouvindo-a novamente, e passo a desconfiar da acuracidade de minhas percepções. Afinal (dizia Lacan), somos todos delirantes. Sinto-me como Chuang-Tzu em seu sonho da borboleta: ao acordar ele não sabia se havia sonhado que era uma borboleta ou se era ela, a borboleta, quem sonhara ser Chuang-Tzu.
A realidade… ah, a realidade…
Alberto Heller
3 Comentários. Deixe novo
Outra que martela incessantemente no cérebro " é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar, que o ar no copo ocupa o lugar do vinho e o vinho ocupa o lugar da dor "
A realidade? Opção!
Viver no sonho ou na realidade?
Fazer da realidade um sonho? Tanto faz!
Viver… Cada momento… Intensamente…
"é que há distância entre a intenção e o gesto…" e quantos centímetros ou quilômetros há nessa distância… só Deus sabe!!! Ou nós sabemos…