No Canto XII da Odisseia, Ulisses, prevenido pela feiticeira Circe, prepara-se para passar com seu barco pelo território das sereias: ordena que sua tripulação tampe os ouvidos com cera e o amarre ao mastro do navio – de maneira que ele possa ouvi-las sem correr perigo. Afinal, dizia-se, ninguém sobrevive a tal experiência: seu doce canto exerce um fascínio irresistível, e uma vez atraídos à sua presença, os homens são por elas devorados.
Delícia!
Embora Ulisses seja louvado por sua coragem e astúcia, sempre que leio essa passagem sinto por ele certo desprezo. Ou seria inveja? Ouvir uma música assim tão sublime, tão poderosa… e ainda assim não sucumbir… Daí me pergunto: ante tal possibilidade, não se entregar à volúpia, mesmo que fatal – valerá a pena? O conhecimento apolíneo consolará ou substituirá a experiência dionisíaca? Poderemos gozar a vida sem aceitar a morte? Orgasmo, em francês: la petit mort, a pequena morte (desde Orfeu, passando por Eros e Psique, Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, el amor y la muerte flertam, cúmplices).
Talvez eu inveje não Ulisses, mas as sereias: quisera eu que minha música tivesse tal poder de encantamento e persuasão, de arrebatamento e luxúria. Minhas mãos acariciariam as teclas do piano, enquanto na plateia as pessoas se contorceriam em mudos delírios de prazer. Ao final nos devoraríamos uns aos outros e restaria sob o foco de luz apenas o piano, banhado em sangue. Fim do ato.
Alberto Heller
3 Comentários. Deixe novo
Lindo texto! Adorei o olhar transgressor que você imprimiu à interpretação.
Obrigado, Emerli!
A sublimação do poder artístico está em conquistar sua plateia.
Hummm… Se há plateia, o encantamento (sublimação) sucumbe aos prazeres e as sensações que tocam a alma!
Assim como o artista toca – com sua alma.
Artistas… Sereias… Sereias… Artistas…