Se me fosse permitido roubar um pouquinho de cada pianista que admiro, eu pegaria a classe de Radu Lupu, a profundidade de Claudio Arrau, a concentração de Emil Gilels, a clareza de Maurizio Pollini, o vigor de Alfred Brendel, a força de Sviatoslav Richter, o acabamento de Andras Schiff, a polifonia de Glenn Gould, o lirismo não sentimental de Wilhelm Kempff. De Vladimir Horowitz, a imensa riqueza de timbres, a espontaneidade, a liberdade.
Desses atributos talvez pareça ser a liberdade o mais estranho – ou ao menos o que pareceria o mais simples: ser livre. Basta querer, certo? Errado. A liberdade é uma conquista. Exige imensa disciplina, maturidade, anos de profundos estudos [John Cage: “Preciso encontrar um meio das pessoas serem livres sem se tornarem imbecis. De forma que sua liberdade as torne nobres. Como farei isso? Eis a questão“].
Horowitz toca e quase parece estar improvisando; experimenta as teclas do piano como quem diz “vejamos o que acontece se eu fizer isso – uau, que legal!”. As notas adquirem sabor de novidade, de presente de Natal, de algo que está sendo criado naquele preciso instante – ou seja, ele consegue esconder os rastros do estudo (tocar bem uma obra musical significa centenas de horas de prática ao longo de muitos meses, o que facilmente embota o brilho e a cor da interpretação – é quando o ouvinte percebe o cansaço de um discurso mil vezes proferido, diligente mas sem viço, “corretamente” executado mas sem arte, sem aura).
Ser livre não é fazer qualquer coisa, não é ceder a vontades e caprichos, não é ser permissivo sem critérios, sem limites, sem parâmetros; isso é escravidão (a não capacidade de negar ou controlar impulsos). Leigos e iniciantes tendem a pensar que a fidelidade ao texto, no caso da música clássica, é uma espécie de prisão, uma não liberdade pela falta de espaço para criação. Engano! Cria-se espaço e tempo dentro das notas, entre as notas (inter-petras), a partir das notas. É como na democracia: as pessoas pensam que são livres, mas poucos verdadeiramente o são, poucos verdadeiramente a aproveitam.
Alberto Heller
4 Comentários. Deixe novo
Excelente!
Obrigado!
É como no teu próprio texto inter-pretas: após haver tocado a primeira nota faço então um gesto amarelo no ar, um gesto que, lentamente, vai transformando o azul, até que este, milagrosamente, deságua verde no segundo som. " Isto é ser Horowitz?
Excelente texto!