Ao longo destes dois anos de pandemia tenho ouvido com certa frequência notícias de artistas que, devido à crise econômica, abandonaram suas profissões (música, teatro, dança, artes visuais, fotografia, cinema). Não são os únicos, claro: em épocas de crises (guerras, calamidades) todos são atingidos – uns mais, outros menos – e cada um precisa se virar como pode, torcendo para que a situação seja passageira e que melhore o mais rápido possível. Até aí, tudo “normal”. No caso específico da classe artística brasileira, porém (não saberia dizer o quanto isso está sendo um fenômeno local ou mundial, mas estou certo de que não somos os únicos atingidos), não se trata de uma crise “apenas” econômica: percebo que algo se esvaziou, algo se perdeu, e não sei se a volta da “normalidade” (após a pandemia e com o reaquecimento da economia) trará automaticamente tudo “de volta”. O artista vive hoje uma profunda crise de sentido: uma crise simbólica, imaginária, identitária na qual ele chega ao ponto de se questionar se o seu fazer artístico não estará se tornando obsoleto.
“Que bobagem, o mundo sempre precisará de arte”, diremos. Sim, o mundo sempre consumirá arte, assim como sempre consumirá alimento, vestuário e tantas outras coisas. Mas a criação artística não se deixa enquadrar tão facilmente na lógica de produção: há um “a mais” no processo artístico que extrapola a cadeia mercadológica (embora faça parte). Mesmo que olhemos para o processo pelo aspecto pragmático e comercial (criação e venda de produtos e serviços artísticos atendendo a determinadas demandas, assim como qualquer outra transação financeira), o trabalho do artista pressupõe uma relação diferenciada com a obra e com o público. E essa relação está comprometida.
Existe hoje uma oferta ilimitada e praticamente gratuita de produtos artísticos, que vai dos streamings ao YouTube e às TVs por assinatura (“por apenas vinte reais ao mês você terá acesso a milhares de músicas e filmes”). Para o consumidor, ótimo! Para o artista: se sua música for ouvida por 22 mil pessoas no YouTube, você ganhará R$1,00. Sim: um real. Para ganhar outro real no Spotify, por exemplo, essa mesma música terá que ser ouvida 16 mil vezes. Você pode se sentir então famoso e importante (“milhares de pessoas estão ouvindo minha música!”), mas está agora com apenas dois reais na carteira. “Ah, mas isso é apenas para divulgar meu trabalho; a partir daí virão convites para shows, e aí sim o dinheiro vai rolar”. Shows esses que, entretanto, não acontecem. Ou acontecem, mas pouco e cada vez menos. Ok, isso talvez explique a razão de artistas estarem ultimamente preocupados e mesmo deprimidos. Mas – insisto – a questão é mais profunda. Não se trata simplesmente de estarmos desmotivados porque há atualmente pouca procura e baixa remuneração; é o sentido do fazer arte que está sendo posto à prova.
Por trás da obra havia, antigamente, “O” artista; agora basta “um” (há tantos artistas que não importa muito quem seja). E aqui tudo se equipara: o bom artista, o artista médio, o genial, o medíocre, o profissional, o amador. É como nas redes sociais, onde disparates, absurdos e falsidades descaradas coabitam de igual para igual com opiniões relevantes, fontes seguras e falas de especialistas. Tudo é arrastado para uma vala comum (John Cage: “É difícil obter informações relevantes; logo elas estarão por toda parte, despercebidas”).
A crítica (que, mesmo nos piores casos, propiciava diálogo e reflexão) foi substituída pela mera curtida, pelo like. Não há mais discussão, apenas emojis. Até uns trinta anos atrás, um evento artístico era precedido por uma fase de divulgação; após o evento, vinha toda uma fase voltada à repercussão, aos comentários e à crítica (especializada e não especializada). Com os anos, parou de haver crítica, sobrou apenas a propaganda do evento; mais tarde tiraram o caderno de cultura dos jornais (não era tão importante, aparentemente); e agora estão morrendo os próprios jornais. Se o evento cultural que estreará semana que vem for de enorme relevância e profundidade ou se for uma bobagem qualquer, os dois terão o mesmo espaço nas redes sociais – e é bem provável que o evento medíocre tenha maior visibilidade. Em época de celebridades, o que importa é ter visibilidade, independentemente do que a possa ter suscitado: fama ou infâmia se equivalem. Se há ou não um valor real em jogo, isso não interessa (vide BBB). Tem-se hoje a impressão de que os artistas estão sempre na desagradável e humilhante posição de estarem pedindo, mendigando, implorando – seja dinheiro (patrocínios), atenção ou qualquer outra coisa.
Neste momento alguém poderia (com certa razão) intervir e argumentar que tais “sintomas” são parte da “condição pós-moderna” e do neoliberalismo. Afinal, não é de hoje que vivemos a chamada crise das grandes instituições (ou crise das grandes narrativas): a Religião, o Estado, a Família, a Arte, a Cultura etc., que por tanto tempo foram capazes de impor ao mundo modelos de ordem e de Lei, hoje lutam por sua manutenção. Antes, quando um Papa ou um chefe de estado falava, todos ouviam atentamente e com máximo respeito, mesmo que fosse para depois discordar, criticar ou mesmo se rebelar; hoje, mal se dá atenção, e ainda se faz um meme engraçado sobre o assunto (o meme sim: torna-se popular, viraliza). Desfazem-se aos poucos as grandes comunidades, emerge um individualismo desenfreado, um “subjetivismo” intransigente que fragiliza toda referência e todo valor.
Volto à questão do valor: quando se chega a uma situação na qual o artista é sistematicamente desvalorizado, ele tende a transferir essa “falta de valor” comercial para uma falta de valor pessoal, existencial: “se minha obra não vale, então EU não valho nada”. O artista passa a se ressentir de sua arte; prefere então abandoná-la para, ao menos, manter sua integridade. O abandono da profissão assemelha-se, assim, a um suicídio ritual, a um seppuku: mata-se para preservar a honra (e a integridade da própria arte).
Mesmo no estudar música (prática eminentemente solitária) percebo essa experiência de perda do sentido: praticando piano, vejo-me frequentemente assaltado por uma vaga e estranha sensação de inadequação, de estar fora do tempo e do lugar; forço-me a continuar estudando, mas o corpo resiste, reluta, rechaça. Não, não é a velha e bem conhecida preguiça. Insisto mais um pouco no tocar, argumentando comigo mesmo que “isso é importante”, “isso trará frutos no futuro” – como se essa promessa vaga pudesse conferir um sentido ao fazer. Mas o sentido não vem. Fica um gosto de auto ilusão, de escapismo (“tantas pessoas fazendo coisas importantes, úteis e rentáveis e eu aqui… tocando piano”). A intromissão e introjeção de uma voz que raciocina em termos utilitários – essa modernidade que supervaloriza atividades como medicina e engenharia (“úteis”) e desvaloriza atividades como filosofia e arte (“inúteis”); no universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca vale mais que um poema, uma chave de fenda vale mais que um quadro.
Estamos vivenciando o desencanto, o desencantamento. Foi Max Weber (1864-1920) quem imortalizou a expressão “desencantamento do mundo”, referindo-se à perda de certa magia – algo que era, por um lado, necessário e inevitável no curso da modernidade, mas que também roubou algo da nossa essência. Poderíamos acrescentar a essa perda a perda de uma outra coisa: de certa aura. Walter Benjamin (1892-1940) – que usou esse termo no sentido aqui exposto – viu na aura “uma trama singular de espaço e tempo: uma aparição do longínquo, por mais próximo que ele esteja” (mais tarde dirá que “o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura”). Parece-me hoje que essa singularidade de espaço-tempo nos está escapando, e que essa aura está cada vez mais apagada, mais desgastada. Na época, Benjamin estava preocupado com os efeitos da massificação e da produção em série sobre as obras de arte; hoje, essa massificação atropela igualmente a todos: artista, público, obra, instituições…
As coisas têm ficado cada vez mais iguais: bidimensionais, chatas, planas (até a Terra); sem profundidade, sem drama, sem tragédia: apenas entretenimento – este sim, infinito e constante: um único minuto de tédio numa fila do banco e já o preenchemos manuseando compulsivamente o celular.
O que esperar do futuro? Eis a questão: parece que não podemos esperar muito. Disso não advém desespero, mas desesperança: um modo de não mais esperar. Tal modo não significa necessariamente desilusão nem pessimismo (nem tampouco pessimismo travestido de “realismo”), apenas uma dificuldade crescente em acreditar que as coisas “irão melhorar”. Diferente do desespero (que ao menos articularia uma resposta, talvez até forte e veemente), a desesperança não responde – não porque não saiba ou não possa responder, apenas que não acredita que uma resposta faria qualquer diferença.
Pareceria que os artistas estão apáticos, abatidos, melancólicos, deprimidos – mas não é isso (embora às vezes esses padrões de resposta e de ajustamento se misturem e se sobreponham): o fenômeno aqui é outro. Não sei ainda nomeá-lo com exatidão. Mas é perpassado pelo niilismo. Não havendo sentido, desiste-se da ação, abre-se mão da ação, desvia-se para outro objeto: “dane-se a arte, vou fazer outra coisa”. Não por vingança, não por ressentimento; simplesmente porque fazer arte nesse contexto deixou de fazer sentido.
Estou já há algumas semanas tentando selecionar e preparar o repertório para meu próximo concerto; mudei inúmeras vezes o programa, mas continuo descontente e não convencido: troco Chopin por Brahms, depois Brahms por Piazzolla, depois Piazzolla por Villa-Lobos, depois Villa-Lobos por obras minhas, depois obras minhas por ler no sofá e esperar por outro dia, quem sabe então “me inspiro” (o protelar me protege dessa histeria, mas me mantém refém da angústia). Parece que nenhuma combinação representa uma opção final. E nenhuma opção faria realmente diferença: não importa o que eu toque, quão bem (ou mal) eu toque, a sensação é que isso não fará diferença alguma.
Não é uma sensação boa. Ao mesmo tempo, não parece ser algo que se possa “curar” mediante uma simples “mudança de pensamento” ou “mudança de atitude”, pois não se trata de um problema “meu”: é do mundo, da sociedade, da cultura, do nosso estilo de vida. É um todo difuso e indeterminado, um todo fora de equilíbrio e profundamente doente.
O mundo nunca precisou tanto de arte como agora; e ela nunca nos esteve tão distante.
Alberto Heller
2 Comentários. Deixe novo
Meu caro Alberto, como você escreve bem! Pensa bem e observa nem! Obrigada. Concordo com você…bastante, eu mesma como escultora vez por outra me pergunto..por que? Pra que? Mas por outro lado faço um curso de piano pela internet chamado Piano Pró,onde mais de mil pessoas em um grupono Facebook compartilham sua paixão pelo piano e pesquisam técnicas, intérpretes e compositores com uma sede surpreendente. A gente nem sempre vê ou fica sabendo mas a emoção e a paixão pela arte continuam…muito vivas!!! A forma, o local onde o público se encontra é que estão mudando .
Alberto, cheguei aqui porque a Karine mencionou teu nome como compositor… tua reflexão aqui é excelente, especialmente por não entregar conclusões. Baita convite à decisões pessoais, já que vc entrega os conceitos sem linearidade, como num diário de auto-terapia. Apesar do texto já ter feito dois aniversários ao menos, há uma discussão andando entre várias mentes da arte falando sobre esse “palco totalmente aberto” que está saindo pela culatra… todos podem, e ninguém consegue. Obrigado pelo momento de “inteligentsia” – como é bom ler algo robusto, que não procura te enjaular num veredito.