Heinrich Neuhaus (1888-1964) foi um grande pianista russo (o nome alemão se deve à origem germânica da família) e um dos mais importantes nomes mundiais da pedagogia do piano. Entre seus alunos mais famosos destacam-se nada menos que Emil Gilels, Sviatoslav Richter, Radu Lupu e Yakov Zak. Relendo seu livro ‘A arte de tocar piano’ (1958), deparo-me com sua recomendação para que o músico sempre empregue máxima concentração e intensidade no estudo. Afinal, diz ele, não adianta tentar ferver água com sessenta ou setenta graus Celsius: ela só atingirá o ponto de fervura quando aplicados ao menos cem graus.
Fácil dizer, difícil fazer. É possível tocar e estudar nos mais variados graus de concentração, e a verdade é que raramente utilizamos o grau máximo na rotina do dia-a-dia: estudamos a dose diária em modo despreocupado, “light”, na certeza de que amanhã estará um pouco melhor, depois de amanhã outro pouco e assim por diante, até que em algum momento a obra estudada estará pronta ou, ao menos, apresentável (“decente”). Um modo de perpétuo adiamento. O problema nesse tipo de estudo não é a demora no resultado – não se trata de uma questão de rapidez e efetividade –, mas que ao longo do processo o corpo vai se acostumando àquela sonoridade, vai se habituando a uma musicalidade descompromissada artisticamente, que varia de medíocre a “relativamente bom”. Protelamos a resolução das questões que a obra nos apresenta e nos entregamos a um estudo de caráter burocrático, e é justamente esse “modo burocrático” que fica impregnado na interpretação.
Claro, certas variantes de estudo exigem maior sobriedade e distanciamento; mas se nos acomodamos num estudo demasiadamente confortável e despretensioso, quando finalmente resolvemos colocar toda nossa intensidade (no dia da apresentação, por exemplo) surgem mil problemas, pois não nos preparamos para ela – para a intensidade. O corpo e alma, habituados aos cinquenta graus, reagem mal aos cem graus.
Acostumamo-nos a ser mornos.
Não só na música.
Alberto Heller
4 Comentários. Deixe novo
Muito bom!
Relatou o mundo em um texto sobre música. Pois podemos aplica-lo desde um estudo cotidiano até nossos relacionamentos.
Agora me arrisco a complementar e dizer que existe um lado positivo de ser morno. Por exemplo, é perigoso “viver a cem graus” quando tratamos de humor, por isso estou tentando atingir a “mornisse” há um bom tempo RS RS
Realmente, os “cem graus” não se aplicam a tudo, seria insuportável rs. A moderação (o “caminho do meio” budista) e o bom senso continuam sendo a via mais sábia, há um tempo para tudo. Abraços!
Alberto, veja, adoro o Budismo e sua diretriz sobre a força do equilibrio, mas o extraordinário , o fora de série é o caminho traçado pelos fora da curva , pelos gênios e talentosos fora de séries mundo à fora. Acho que tanto o texto quanto o pianista russo Heinrich Neuhaus estavam falando disso. Desconheço pessoas extraordinárias que não deram suas ´´vidas “ figurada ou literalmente para alcançar um resultado. O proprio Buda o Cristo, ou Kristhna tiveram espiações dolorosissimas para alcançar a iluminação ou o estado mais elevado do ser. Forte abraço !!
Obrigado José Ricardo pelos seus comentários! Creio que a dificuldade reside antes em nossa compreensão e uso das palavras; moderação não precisa virar neutralidade nem indiferença, assim com a intensidade dos “cem graus” não precisa ser entendida como radicalismo – vejo-a antes como entrega. Como dizia Nietzsche, a vida é um “dizer-sim”; o neurótico, por exemplo (de acordo com Freud, praticamente todos nós rs), muitas vezes se perde nos muitos quiçás e talvez ao invés de abraçar seus sims (mesmo ao dizer sim ao não). Abração!