Ainda estudante de música na Alemanha, fui chamado certa vez para tocar num hotel durante um jantar de réveillon. Em dado momento, um homem de uma mesa próxima veio até mim, visivelmente irritado, e perguntou quanto eu iria receber por aquele trabalho, pois ele estava disposto a pagar-me o dobro para eu parar de tocar. Agradeci sem graça sua “generosa” oferta e continuei tocando. Passei a prestar atenção nas conversas do seu grupo, logo entendendo que eram xenófobos declarados e estavam indignados por se verem obrigados a passar a virada do ano ouvindo um estrangeiro tocar. Isso me deixou subitamente aliviado: queriam aniquilar a mim, não à minha arte (menos mal: antes silenciar a carne que o espírito). Mas que doeu, doeu.
Anos depois, durante um ultrassom para acompanhamento de gravidez, o médico se virou e disse – sem nenhum cuidado – a mim e à minha esposa, ainda deitada: “não tem som nenhum; o bebê está morto”. Aquela frase ficou ecoando por anos na minha cabeça, ainda ecoa. Como pude logo eu, que passei a vida toda trabalhando com sons, criando sons, ter um filho ou filha (nunca saberei) sem som? Esse silêncio doeu mais, muito mais.
Dizem que aprendemos com a dor. Fiquei mais forte depois disso? Mais sábio? Não sei, acho que não. Nem sei como fiquei, sei apenas isto: fiquei (ficamos). Recuperei a palavra e o som, mas aquele silêncio ficou ali, num cantinho. Minto: em muitos cantinhos: bolsões de ar (vácuos) onde a palavra resvala, tropeça. Às vezes o silêncio quer se fazer palavra, sobe todo o caminho desde as entranhas até a garganta, mas chegando à boca se desmancha em saliva e escorre de volta, mudo.
Alguns silêncios gritam em nós, outros apenas ficam ali, calados, tentando não chamar a atenção. Alguns silêncios crescem, outros diminuem; alguns viram lágrima, outros viram música (ou livro ou tela). Alguns são bebidos com chá, outros com vinho (e há os que pedem por destilados mais fortes). Alguns doem nas costas, outros no peito; alguns esquecem de doer porque nos acostumamos a eles. Alguns se disfarçam de nobreza, outros caem na vida; alguns ganham companhia, outros preferem a solidão.
Parecem domesticáveis, mas sua natureza é selvagem. Quando machucam, não o fazem por maldade, simplesmente acontece. Não sabemos se queremos chutá-los ou por no colo. Seja como for, continuam ali, existindo junto às palavras, ao lado das palavras, dentro das palavras: o silêncio amando a palavra, a palavra amando o silêncio.
De quantos silêncios são feitas as pessoas com quem convivemos? Não fazemos ideia. Mas é mais do que se imagina. Sempre mais do que se imagina.
Alberto Heller
38 Comentários. Deixe novo
Parabéns e minha total solidariedade e mês ouvidos atentos aos teus silêncios!
Magnífico texto de dentro de tua “anima” de Artista privilegiado!
Obrigado querido Rogério! Abraço!
Calou fundo meu coração.
Massa Alberto! Forte abraço, belissimo trabalho.
Obrigado!!!!!
Muito bom!
Obrigado Gerson! Abraço!
Nossos amigos
Martin Luther King Jr.
No final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos.
Sinto silêncio bem parecido!
Parabéns pelo texto.
Penso que o silêncio é um sofrimento intolerável, ou a face intolerável do nosso sofrimento, essa com a qual nossos sintomas tentam nos conciliar.
Obrigado!
Muito forte isso. Parabéns pela sensibilidade
Lindo texto.
Obrigado!
Obrigado por permitir-nos ter acesso às suas palavras.
Seja bem vindo!
Lindo meu amado, parabéns pelo seu texto tão profundo.
Este “silêncio” ainda “grita”dentro de mim. Golpe duro,, mas estamos firmes.
Te amo.
Não é fácil… Te amo!
Obrigada por compartilhar, Alberto. Realmente existem silêncios que falam muito. A experiência do ultrassom me identifiquei, pois infelizmente tive a mesma experiência. Lendo vc falar sobre o silêncio me lembrou muito um trabalho de conclusão do estágio de clínica q tratava uma paciente q não falava na sessões, foi incrível e desafiador, pois na época existiam pouquíssimas biografias sobre o silêncio. Quanto ao pedido q lhe foi feito, como diria meu pai: quem nasce para cascalho não vira diamante. Parabéns, excelente reflexão 👏👏👏
Obrigado Fernanda! Lamento pelo silêncio do mesmo caso… é muito triste… Abraço!!!!
De quantos silêncios são feito as pessoas com quem convivemos??👌👏👏👏👏🙏❤
Obrigado Marina! Abraço!
Posso chamar de amigo aquele a quem muito bem falou da dor da alma, dor esta que tenho? Querido amigo! Talvez um alívio saber que não sou só eu a sentir isso, vazio, mas mais uma dor de ver a dor do coração do próximo e de saber de tantas insensibilidade de tantos outros. Mas temos um amor, um ser capaz de nos entender e perdoar por sentir dor embora tenhamos td pra ser feliz; uma terra linda que nos abriga, cheiros que podem nos fazer voltar a lembranças queridas e sonhos que podem nos levar pra longe em viajens incríveis! Sim querido amigo é Ele: O Criador, seu nome é Jeová! Agradeço de coração poder lhe dizer que Ele deu seu filho por mim e por você e por toda a humanidade. Então temos que continuar e ser gratos pelo que nos deu com tanto amor.
Obrigado cara amiga! Abraço!!!
Um dia alguém me disse que o grito mais alto é o silêncio… acreditei piamente. E em outro momento vivi o silêncio de alguém que eu gostaria que gritasse. A dor foi exatamente essa que você descreveu… seu texto é, mais uma vez, brilhante, porque escrito com a alma!
Que texto sublime. Parabéns, Alberto. E tens toda razão: é “sempre mais do que se imagina”. Um grande abraço.
Obrigado caro Walter! Grande abraço!
Sensacional Alberto !
Obrigado Enéas! Grande abraço, querido!
Que sensibilidade. Tocou-me. Obrigada pelo texto.
Obrigado!
Profundo, triste, indescritível pois a descrição da dor é quase impossível ser traduzida em palavras. Mas chegou à minha alma, também marcada por suas dores…
Muito profundo e sensível, muito.
Alberto, o texto expõe com imensa naturalidade é grande generosidade um tópico muito difícil de descrever. Não é à toa que você é um respeitado estudioso do assunto. Parabéns e umabraço do Derli
Lindo texto, Alberto… me emocionou em silencio. Um abraço querido amigo.
Que texto lindo e profundo . Um dos melhores que li . “ Alguns silêncios gritam em nós, outros apenas ficam ali, calados, tentando não chamar a atenção. ”
Parabéns pela sensibilidade e forma de externar .
Que texto lindo e profundo . Um dos melhores que li . “ Alguns silêncios gritam em nós, outros apenas ficam ali, calados, tentando não chamar a atenção. ”
Parabéns pela sensibilidade e forma de externar .
Obrigado pelas palavras! Abraço!!!