No livro “Presto com fuoco” (1995), o escritor italiano Roberto Cotroneo apresenta a história de um pianista obcecado pela quarta Balada de Chopin (teria descoberto um manuscrito perdido com um final diverso daquele conhecido). Em dado momento, o protagonista conversa com um colega (outro pianista, como ele), que lhe diz: “Creio que a sua Balada preferida seja a quarta, em fá menor. E desta vez confesso-lhe a razão: no momento, é a que toca pior”.
Realmente, não sei se as obras que mais amo são as que melhor toco. Uma dessas peças, por exemplo (a Fantasia Op.28 em si menor de Scriabin), nem sequer cheguei a concluir seu estudo: namoro-a há mais de vinte anos e sempre digo: ainda não. (Talvez a prefira como aquelas musas dos cavaleiros medievais: inalcançável, impossível).
Certa vez o maestro de uma orquestra de Hamburgo me telefonou perguntando se eu tinha em meu repertório o Concerto nº1 de Schostakovich para tocar com eles. Menti descaradamente afirmando que sim (imaginem se eu perderia essa oportunidade!) e, ao desligar, fui imediatamente ver onde havia me metido. Odiei a obra. Tarde demais, agora tinha que estudá-la. No começo me doía o corpo todo, incomodado com aquela música, com a qual não me identificava. Com o passar dos dias o desconforto foi passando, e ao cabo de algumas semanas passei a gostar dela. Mais do que isso: vi o quanto era genial! Quando vieram as apresentações (quatro audições em diferentes cidades da Alemanha), a grata surpresa: foi uma das obras que melhor toquei na vida. Um sucesso! E jamais a teria escolhido de livre e espontânea vontade.
Constato esses fatos, mas não sei o que fazer deles. Poderia analisá-los e interpretá-los; poderia me forçar a encarar o objeto do meu amor musical e finalmente tocar a Fantasia de Scriabin, e quem sabe algo incrível aconteceria comigo. Ou não – não sei. Poderia concluir algo filosoficamente inútil, como “o profissionalismo requer certa distância”, ou “o calor excessivo queima em vez de aquecer”, ou pior: “a busca nos protege do encontro”. Prefiro permanecer perdido nesse inconsciente brumoso e misterioso, onde ainda existem princesas trancafiadas em castelos guardados por temíveis dragões. Fantasio a Fantasia; adio o momento em que finalmente a tocarei, em que finalmente serei (como diz Fernando Pessoa no poema Adiamento: depois de amanhã serei aquele que hoje não posso ser nunca).
Mas um dia…
Um dia tocarei essas obras que hoje apenas sonho.
E nesse dia…. Ah!… céus e terra hão de se mover!…
Alberto Heller