A fruição da música clássica exigiu por muito tempo que o público se dirigisse a locais específicos (geralmente teatros) nos quais pudesse saborear a música de maneira concentrada e introspectiva. Hoje, com as facilidades da vida virtual e mais propensos à dispersão, ficamos um tanto mal acostumados, dá até preguiça de “ter que ir até lá”: a música que venha a nós – aos nossos carros, aos nossos celulares, às plataformas que nos forem convenientes. E que venha de graça e com rapidez. Consumimos velozmente, um novo produto se segue rapidamente ao anterior. Nada de frear o tempo: é preciso acelerar, sempre.
A música clássica vai na contramão disso: ela exige a disciplina do tempo e do espírito – disciplina à qual poucos hoje se submetem: inadvertidamente nos encontramos em permanente estado de flutuação, sempre à deriva. No excesso de oferta, tornamo-nos indiferentes, apáticos.
Alguns apontam para certo “cansaço” e “saturação” em relação ao universo da música clássica; esse cansaço não é da música, mas das instituições, do mercado, do espírito burocrático (que acomete tantos profissionais), dos modos pelos quais a acessamos. A música em si continua muito bem, obrigado (e aproveita para avisar que está com saudades).
Aproximar-se dela com propriedade tem se tornado, mais que um desafio, um verdadeiro luxo (quase uma perversão): é preciso dar-se ao luxo de permitir-se ter tempo para (re)encontrar dentro do tempo o não–tempo da arte.
Enfim: a crise não é da música. O problema é muito maior, muito mais grave. Tão grave que sua solução exige delicadeza.
Alberto Heller
6 Comentários. Deixe novo
Você tem toda razão! Sinto saudade daquele tempo em que acordava às 8h do domingo para estar às 10h no concerto do Guairão, quase todos os domingos! Sentada, às vezes sozinha, permitia-me ouvir e deixar que meu corpo se enebriasse com aquele som entrando em cada célula de meu corpo, sem pensar em mais nada! Às vezes, cansada do mundo, descansava na música. Às vezes, doída dele, permitia-me chorar um desabafo cansado, acalentado pela própria música que me provocou o choro.
Mas, independentemente do sentimento daquele dia, saía de lá renovada, feliz, descarregada, aliviada para começar uma nova semana , tudo de novo… saudades de um tempo que não volta mais…
É bem diferente de escutar música num CD ou na rádio…
Nem me fale… tenho realmente saudade do teatro com a orquestra…
Além do que, quando se ouve num CD, sempre está fazendo também outra coisa, não só ouvindo. No teatro é possível apenas se concentrar para isso… ouvir música!
e agora, tenho mais saudade ainda do tempo que tinha para fazer isso e agora me falta!
Querido Alberto! Sou muito grata aos seus textos! Vc consegue dizer num blog o que muitas vezes a gente pensa mas não acha as palavras corretas!! Grande abraço!
Obrigado Mauren! Abraço!!!!
Olha a imagem musical descrita pela Clarice Lispector numa catedral: como um cataclisma o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes recebiam as notas e devolviam- nas sonoras, nuas e intensas. Elas traspassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimento, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música . Quando subitamente parou, meu corpo ainda vibrava aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translúcido. Momento perfeito que mostra que ainda resta muita delicadeza. Não desistamos das convicções tão cedo.