Momento 01: médico visita e entrevista presos durante programa de televisão; ao conversar com uma transexual, esta revela não receber visitas há vários anos; ele se emociona e a abraça. Milhares de pessoas se comovem com essa imagem. Momento 02: dois dias depois vem à tona que a tal transexual está presa porque violentou e assassinou um menino de nove anos. A comoção se transforma em indignação e milhares de pessoas se manifestam contra o médico, contra o programa, contra o tal abraço etc.; tem início o Momento 03: o linchamento moral dos envolvidos.
Como sempre, formam-se dois grupos antagônicos e (re)começa a guerra (uma guerra que já está em curso e que se serve de qualquer pretexto para manter a belicosidade em alta). A lógica binária nos faz esquecer que somos seres plurais e ambíguos, e nos coloca entre alternativas drasticamente opostas e mutuamente excludentes – neste caso: devo sentir pena ou ódio? Como se não fosse possível sentir revolta diante de um crime, exigir punição aos culpados e ao mesmo tempo ter pena – pena da vítima, do agressor, do sistema, da própria impotência etc. Afinal, a mão que castiga não precisa ser inumana, e a compaixão não precisa ser conivente. [No universo terapêutico, as encruzilhadas e os dilemas surgem frequentemente com uma função bastante específica, qual seja: paralisar-nos, congelar-nos, sabotar nosso poder de ação e de reação, bem como nossas possibilidades criativas].
De todo modo, por mais ardorosos que sejam os debates, em menos de duas semanas tudo estará esquecido: a vida seguirá, estaremos ligados à nova polêmica da semana e não mais nos lembraremos do médico nem da transexual, muito menos de seus familiares. A indignação é uma chama que precisa sempre de lenha nova, combustão essa que alimenta a caldeira que movimenta o trem cujos vagões são “opinião pública”, “notícias do dia”, “polêmicas da semana”. Graças a Deus pelo consumo do sensacionalismo, que nos protege de olhar para a própria miséria!
Pior que aquele que julga, porém, é aquele que julga os que julgam – que é justamente o que estou fazendo neste momento (Momento 04: quando analistas, teóricos e afins se acham aptos a conseguir olhar “de fora” e a emitir opiniões extremamente inteligentes sobre qualquer assunto, principalmente sobre “os outros”– como se não fossem eles mesmos os outros dos outros). Isso faz de mim o pior de todos: a vaidade máxima, a pretensão máxima. Junto-me, portanto, a Fernando Pessoa em seu Poema em linha reta: eu, que tenho sido vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
PS: Me desculpem, esqueci de falar das andorinhas da Polinésia (citadas no título deste pequeno texto). Pois é… sempre que se fala de um tema, há infinitos outros temas sendo ignorados e que parecem não ter relação alguma com o nosso. Em toda fala se esconde o esquecimento e a inconsciência do mundo; em toda visão há infinitos pontos de cegueira.
PPS: Após ser preso e torturado, Jesus Cristo recebeu uma coroa de espinhos; segunda crença popular, uma vez crucificado, um grupo de andorinhas começou a remover os espinhos, aliviando seu sofrimento – razão pela qual passaram a ser consideradas seres sagrados.
Alberto Heller
2 Comentários. Deixe novo
Julgados e julgadores somos todos… querendo ou não, conscientemente ou não! Parabéns pelo texto…
Sim, em menos de duas semanas tudo estará esquecido. E acho que não poderia ser diferente. Não faria sentido seguirmos discutindo o assunto indefinidamente. Nem tudo que eu disse saiu da forma pretendida ou com a clareza que minha vã filosofia supunha. Mesmo assim, acho que valeu! Conheci melhor meus amigos. E também os nem tanto! Só isso já é positivo. Mas continuo me incomodando com o fato de misturarem na mesma sopa a ética, a ideologia e um pouco de idiossincrasia também. É como se eu, com meu sangue judeu, negasse valor à música de Wagner, ao saber que ele foi quase um protonazista. Sendo que até então eu era um ardente admirador de sua obra. Para mim, pura hipocrisia! É, mais ou menos, por aí!